A
quem ainda não ouviu, recomendo uma canção incluída no último
disco do grande compositor, letrista e intérprete Caetano Veloso,
intitulada "Um Comunista", na qual ele presta uma
homenagem, tardia mas sincera, a Carlos Marighella. O link para o
Youtube é este:
Como
é importante ouvir seguindo a letra, ela está no final deste
artigo.
Formalmente,
a música é de primeira qualidade. É uma espécie de litania
(ladainha) não-religiosa, em que a repetição exaustiva do motivo
melódico realça extraordinariamente os versos e sua intenção. Tal
técnica já foi usada muitas outras vezes. Por exemplo, em “Pra
não Dizer que não Falei de Flores”, de Geraldo Vandré (a
conhecidíssima “Caminhando e Cantando ...”
http://www.youtube.com/watch?v=onbRuVLPDmI
) e a menos conhecida “Working Class Hero” (Herói da Classe
Operária http://www.youtube.com/watch?v=njG7p6CSbCU),
do John Lennon pós Beatles.
Caetano,
em “Um Comunista”, usa a técnica da ladainha, mas com muito mais
riqueza melódica e harmônica.
É
surpreendente – num sentido positivo – que Caetano tenha composto
uma canção como esta. Porque ele jamais demonstrou simpatia para
com os comunistas. No caso, a homenagem é a um revolucionário que
admirava provavelmente a partir de uma posição romântica. Mas, de
qualquer maneira, há trechos que emocionam a todos nós, pelo
reconhecimento que faz de determinadas características nossas.
Refiro-me
aos seguintes trechos da letra:
"... foi
aprendendo a ler / olhando o mundo à volta / e prestando
atenção / no que não estava à vista / assim nasce um
comunista ...";
"...
os comunistas guardavam sonhos / os comunistas / os comunistas
..." (trecho repetido várias
vezes ao final da gravação);
"... sempre
foi perseguido / nas minúcias das pistas / como são os
comunistas ..."
"... vida
sem utopia / não entendo que exista / assim fala um
comunista ..."
Surpreende
também que ele cite, como um dos que prenderam Marighella, o Antônio
Carlos Magalhães – tendo em vista que sempre que teve oportunidade
louvou o falecido senhor feudal da política baiana. Coisa que, por
sinal, muitos outros faziam – inclusive o também falecido Jorge
Amado.
Mas
como nada é perfeito, Caetano comete dois erros crassos de avaliação
– salvo se não se tratar de erros de avaliação, e sim de uma
espécie de compensação política pela homenagem a Marighella e
pelas frases de reconhecimento aos comunistas.
Um
deles está contido no trecho "... as
nações terror / que o comunismo urdia ...".
Ora, que nações seriam essas? Não me consta que as nações em que
o socialismo chegou a ser implantado exportassem "terrorismo".
Com certeza, por sua perspectiva internacionalista e pelo dever de
levá-la à prática, apoiavam de diversas maneiras as lutas de
libertação de outros povos. Daí a chamá-las de "nações
terror" vai a distância exata entre uma afirmação coerente
politicamente e uma simples "caetanice" (no pior sentido).
O
outro erro aparece em "...
o mulato baiano já não obedecia / às ordens
de interesse / que vinham de Moscou ...".
Claro que ele aqui se refere à ruptura de Marighella com a posição
adotada pelo PCB de luta de massas contra a Ditadura, e sua adesão à
luta armada. Entretanto, a idéia de que a estratégia àquela altura
proposta pelo PCB fosse mero seguidismo das posições de grande
potência da URSS (que de fato existiam) é um equívoco grave.
A
posição de recusa da luta armada era claramente majoritária no
interior do PCB. Não só pela compreensão de que ela não tinha –
por todos os motivos – a menor condição de ser vitoriosa, mas
também porque fortaleceria indiretamente o regime, que facilmente
isolaria e estigmatizaria os grupos armados. O que de fato ocorreu.
O
afastamento de inúmeros bravos camaradas para o caminho da luta
armada é questão que não está mais em causa, pois a História nos
deu razão. Apenas, o Caetano incorreu nos velhos erros de considerar
que não tínhamos vontade própria, de que éramos meros
“teleguiados” de Moscou. Com o adendo de que nem em todos os
casos a URSS foi contra a luta armada. Há vários exemplos de apoio
militante dos soviéticos a lutas de libertação nacional e a
levantamentos armados contra governos opressores.
Parece que o
genial compositor, letrista e intérprete baiano "deu uma no
cravo e outra na ferradura". Em sua nova canção, ele elogia os
comunistas numa perspectiva idealista, mas os critica no concreto.
Totalmente Caetano, afinal.
FELIPE
OITICICA (RJ)
A
letra da canção:
Um Comunista
|
Um
mulato baiano, muito alto e mulato, filho de um italiano e
de uma preta huça,
foi
aprendendo a ler olhando mundo à volta e prestando
atenção no que não estava a vista; assim nasce um
comunista ...
Um
mulato baiano que morreu em São Paulo, baleado por homens
do poder militar, nas feições que ganhou
em solo americano, a dita guerra
fria, Roma, França e Bahia ...
Os
comunistas guardavam sonhos Os comunistas! Os comunistas!
O
mulato baiano, mini e manual do guerrilheiro urbano
que foi preso por
Vargas, depois por Magalhães, por fim pelos milicos, sempre
foi perseguido
nas minúcias das pistas, como são os comunistas ...
Não
que os seus inimigos estivessem lutando contra as nações
terror que o comunismo urdia,
mas
por vãos interesses de poder e dinheiro, quase sempre por
menos, quase nunca por mais ...
Os
comunistas guardavam sonhos Os comunistas! Os comunistas!
|
O
baiano morreu, eu estava no exílio, e mandei um recado: –
eu que tinha morrido e que ele estava vivo,
mas
ninguém entendia, “vida sem utopia não entendo que
exista”: assim fala um comunista ...
Porém,
a raça humana segue trágica, sempre, indecodificável, tédio,
horror, maravilha ...
Ó,
mulato baiano, samba o reverencia, muito embora não
creia em violência e guerrilha tédio, horror e maravilha
...
Calçadões
encardidos, multidões apodrecem, há um abismo entre
homens e homens, o horror ...
quem
e como fará com que a terra se acenda? E desate seus
nós, discutindo-se Clara, Iemanjá, Maria, Iara, Iansã,
Catijaçara?
O
mulato baiano já não obedecia às ordens de interesse
que
vinham de Moscou, era luta romântica era luz e era
treva, feita de maravilha, de tédio e de horror ...
Os
comunistas guardavam sonhos Os comunistas! Os comunistas!
(várias
vezes)
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