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terça-feira, 13 de agosto de 2013

GIGANTE – PARTE III


Ninguém tem certeza do que o motivou. Talvez a constatação de que aquele campo de estacas que delimitava seu território era pura ilusão; talvez a fragancia remota de alguma fêmea, do outro lado do atlântico (vai saber ao certo como e em que condições funciona o olfato dessa espécie). O fato é que, já com o sol transformando o azul do céu em laranja arrebol, Ali se posicionou como fundista em dia de prova e arrancou seu enorme corpo do espaço que lhe era destinado, ao mesmo tempo em que emitia urros colossais pelo enorme tubo à frente de sua boca, como se os sons de uma centena de trombetas fossem emitidos em uníssono.

Houve correria e desespero. Já muitas crianças, juntamente com seus acompanhantes, se movimentavam para adentrar a lona e participar da matinê. Por outro lado, as menos favorecidas pela sociedade, que não dispunham de permissão para a entrada, aglomeravam-se em torno do cerro de estacas, destinadas a empalar o pobre paquiderme caso este decidisse se rebelar contra o cárcere sutil e desonesto. Mas Ali as enfrentou; e foram empurradas cada uma das estacas que se contrapunham à sua trajetória, de modo a adormecerem no solo na posição horizontal, levantando buracos de terra com suas bases, quase como se houvesse um planejamento prévio daquele ato, com a solução imediata de todas as equações envolvidas.

Os adultos começaram a se agitar e correr à frente de suas crias, de modo egoísta. As crianças, por outro lado, não sabe-se ao certo se por encantamento ou pela intrepidez temerária da idade, permaneceram ali, de queixo caído, admirando o elefante. Não poucas dentre elas ousaram aproximar-se mais... em certo momento a impressão foi que uma delas, a mais magricela e amarrotada de todas, atreveu-se a tocar a couraça do colosso enquanto este ainda estava prestes a transpor o último obstáculo.
Instante de silêncio não combinado, o som audível foi da estaca sendo subjugada e rompendo-se, e da terra vermelha que, retirada do repouso pela alavanca, voltou ao repouso no solo. “Dai-me uma alavanca e um ponto de apoio, e serei capaz de mover a terra.”

O gigante parou após a última linha de estacas, permanecendo imóvel por alguns poucos (porém, intermináveis) segundos, girou a cabeça nos dois sentidos possíveis, de modo a abanar as enormes orelhas, soltou mais um urro ensurdecedor e partiu em disparada rumo a uma vistosa coluna de folhagens logo à frente, como se acabasse de avistar uma mesa posta em um banquete.

As crianças em volta, num raro momento de lucidez coletiva, abriram espaço para Ali, e saíram gritando em algazarra febril – hora imitando os urros do gigante liberto, hora criando seus próprios urros.

Ao chegar na linha de vegetação, o gigante parou mais uma vez, e com a tromba em riste, apontando para todos os lados, contraindo e expandindo a parte interna, passou a aproximar-se lentamente de uma enorme árvore de fruta-pão.

A meninada curiosa ainda não percebia a silhueta da senhora, que por trás do tronco da árvore, desbastava ervas daninhas ao redor... Mas o olfato do paquiderme foi capaz de localizá-la... Num movimento ao mesmo tempo abrupto e delicado, a tromba foi envolta no corpo da senhora, o suspendeu no ar, e o pôs frente ao animal. As crianças prenderam a respiração por um longo instante, aguardando a tragédia. Mulher e paquiderme apenas miravam uma ao fundo dos olhos do outro, e vice-versa. Nenhum som, nem de agitação, nem de dor, nem de desespero... Apenas olhares trocados, e a espera pelo inevitável. O animal abriu e fechou os olhos exatamente três vezes. Depois começou o processo inverso, baixando o corpo da senhora para a posição precisa em que esta se encontrava, sem protesto algum da parte dela... Ao baixá-la completamente, manteve a tromba por um breve momento colada em sua face.

Sou capaz de jurar em nome de minha mãe que aquele foi um beijo de adeus...

Fábio Henrique de Carvalho
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