"Quero saber das pessoas que eu filmo, só"
04/02/2014
Mariana Simões
Na Pública
Em entrevista inédita concedida em 2011 a Mariana Simões, então
estudante de comunicação, o documentarista Eduardo Coutinho não escolhe
as palavras para definir o que faz
Eu tinha 22 anos quando comprei uma passagem para o Rio de Janeiro para
entrevistar Eduardo Coutinho, que morreu no domingo, dia 2/2, no Rio de
Janeiro. Na época eu cursava graduação em Comunicação nos Estados Unidos
e estava passando as férias em Brasília. Fiquei um mês trabalhando na
tese: metade fazendo pesquisa sobre a obra de Coutinho e a outra metade
com o telefone na orelha, tentando agendar uma entrevista com o
documentarista.
Quando consegui o número de telefone do escritório dele, achei que a
minha entrevista estava garantida. Mas faltando uma semana para eu
voltar para Nova York, ainda não tinha dado em nada. Comecei a entrar em
pânico. “Se faça de boba, minha filha,” meus pais me disseram.
Eu segui o conselho: mandei um e-mail para a produtora dele dizendo que
já tinha comprado minha passagem para ir ao Rio de Janeiro e que, no dia
seguinte, ligaria para confirmar o horário da entrevista. “Você sabe
como é, ele já está velho, não gosta mais de dar entrevista,” alguém me
disse pelo telefone dias depois. Expliquei que já estava no Rio de
Janeiro esperando ele me atender. A passagem custou caro, eu iria voltar
logo para o exterior, fui dizendo.
Eu tinha entrevistado o cineasta Vladimir Carvalho na semana anterior.
Ele foi simpático ao telefone e, quando nos encontramos, ficamos horas
conversando. Um homem sorridente, com boa vontade, cheio de energia.
Com Coutinho foi praticamente o oposto. Quando entrei na sala para
entrevistá-lo, a única que estava sorridente era eu. Coutinho estava
atrás de uma mesa, me esperando, um maço de cigarros em mãos. Ele falava
baixo, meio rouco. Tossia muito.
Apertou minha mão. Perguntei se podia filmar a entrevista, ele
gesticulou que sim e eu comecei a agradecer como uma tonta. Disse que
era uma honra poder entrevistar um homem que mudou a cara do
documentário brasileiro. Fui logo acrescentando que achava ele um grande
documentarista, alguém que eu admirava, mas percebi que ele não gostou
dos meus elogios. Não queria se fazer de herói, nem aceitar o título de
grande cineasta; ele era apenas um cara que gostava de documentar o
encontro da câmera com o mundo. E, de fato, avisou que não fazia filmes
para descobrir a verdade sobre ninguém.
Tudo que eu tinha entendido sobre o trabalho dele até então foi aos
poucos desmoronando. “Eu estou interessado que a pessoa fale a partir de
sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, e
portanto tem verdade e mentira juntos. Isso é inevitável,” ele
explicava. De acordo com Coutinho, não era possível fazer um
documentário que só contasse a verdade. Para ele, não existia uma
verdade única sobre um acontecimento, mas sim várias verdades ou várias
experiências vividas que juntas pudessem contar uma história.
Assim como os gestos e o comportamento dele, naquele dia, também contaram uma história.
Quando entrei na sala, vi um homem de 80 anos que já estava cansado,
cuja voz às vezes falhava, mas um homem que ao longo da entrevista foi
se soltando, começou a mostrar outra cara. Apesar da aversão que sentia
em dar entrevistas, eu notava o brilho no olho dele, o orgulho que tinha
pelo que fazia, a paixão que sentia pela arte que havia criado. Antes
de ir embora, pedi para tirarmos algumas fotos juntos. Na última, ele
puxou meu braço e disse: “Agora chega de fotos genéricas, vamos fazer
uma em movimento.” E aí ele acenou para a câmera e por um instante
consegui capturar algo: não a verdade sobre Coutinho, mas um retrato
dele naquele momento. Que se foi.
Você acha que o documentário é de alguma forma uma extensão do jornalismo?
Questões gerais eu odeio. Se você me pergunta a diferença do
documentário pra ficção nós não vamos sair do lugar. Não, eu fiz nove
anos de jornalismo para a TV Globo, trabalhei três anos em jornal
também, até fui jornalista, dirigi filmes para o Globo Repórter. Mas eu, desde que eu saí do Globo Repórter, tudo que eu faço é contra o jornalismo.
Contra o jornalismo?
Eu odeio o jornalismo. Não estou interessado em jornalismo. Não estou
interessado em informações, mapas, em filme militante, em filme
político. Deus me livre. Aquecimento global, liberar maconha. Não estou
interessado em filmes políticos, sociais, genéricos. Nada que é genérico
me interessa. Quero saber das pessoas que eu filmo, só. Então comigo é
uma exceção, um tipo de cinema particular que eu faço, do qual é o único
que eu sei falar. Não falo sobre o cinema em geral porque, bom, o
documentário pode ser tudo, né? Jornalistas podem fazer excelentes
documentários jornalísticos, evidente. O Michael Moore é jornalista, no
fundo um cineasta, e que é um tipo engraçado e tal, mas que é um
populista evidentemente de esquerda e que, enfim, usa metas que eu não
usaria. Mas é um cara altamente eficaz, está milionário e tal, mas é
jornalismo. E seus filmes são úteis? São, em certa medida são. Tratar
dos assuntos que ele trata, agora, as metas que ele usa, não me
interessa.
Você acha que o Michael Moore interfere muito no filme?
Michael Moore é um exemplo, tem mil outros. Todo cara que começa a fazer
um filme dizendo “eu vou fazer esse filme para obter tal resultado” não
me interessa. Vou dar um exemplo: o filme do Al Gore, não vou ver. Não
estou interessado! O filme que o cara sabe que ele vai fazer para dizer
que a maconha deve ser legalizada, não estou interessado! Que o mundo
vai ser aquecido, o cacete a quatro, não estou interessado! Outro pra
dizer que não pode comer carne. Outro pra dizer que a miséria é boa. Não
quero saber disso, não interessa. Faça um livro, faça isso no jornal.
Agora a experiência de fazer cinema, que é tão ingrata, que você não
ganha dinheiro, que é chata pra burro, só tem sentido para mim se é uma
coisa que você goste, desse tipo de coisa eu não gosto. Tem gente que
adora e faz bem. Um filme que é feito sobre o nazismo etc, isso é um
filme jornalístico de um certo sentido, mas com alto nível de pesquisa e
tal e interessante, mas não é o tipo de filme que me interessa fazer.
Até que ponto você, como diretor, deve interferir, por exemplo, durante uma entrevista?
Eu tento não interferir. Ou melhor, eu tento… Eu não julgo. Eu não julgo
se um cara, uma pessoa que é escrava, que gosta de ser escrava, eu não
vou perguntar “mas como?!” Se ela quiser ela dá um discurso do porquê
ela gostar de ser escrava. Eu não estou lá para mudar as pessoas, eu
estou lá para ver o estado do mundo através das pessoas. A partir da
relação que eu vou ter com a pessoa, que é o essencial, na qual tudo
pode acontecer, pode haver conflitos ou não conflitos etc. Mas que eu
não estou lá a fim de dizer para a pessoa que ela mude de opinião, não.
Aliás, a opinião não me interessa. Me interessa que as pessoas tratem de
sua vida. A partir de suas vidas, as pessoas vão ter opiniões de
direita e esquerda, tanto faz, mas que são viscerais. Eu não estou
interessado no conteúdo social da vida da pessoa, eu estou interessado
no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é
memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira
juntas, isso é inevitável. Não há solução. Ninguém consegue desobstruir a
memória, então eu aceito aquilo que é exagero. Como sabe se o
sentimento é verdadeiro ou não? Sabe, “eu gostei de um cara.” Eu sei lá
se gostou ou não, ela conta a história do romance dela, é um segredo.
Porque são pessoas comuns. Se eu fosse entrevistar o Napoleão não ia
entrevistar sobre a vida dele, o interessante é a política dele. Quer
falar sobre um político, faça um livro.
Por que você começou a fazer documentário tão tarde na vida? Acho
interessante que não foi na faculdade que você entrou nesse caminho.
Você começou fazendo Direito, não foi?
Comecei por Direito porque era o que se fazia. Direito, Engenharia,
Medicina. Mas enfim, larguei, fui trabalhar em jornalismo, depois fiz um
curso de cinema e passei a fazer cinema. Agora, ninguém podia pensar em
fazer documentário no Brasil nos anos 1960. Nem cinema! Quanto mais
documentário. Longa metragem? Isso não existia. Som direto ia começar
ainda e tal. E daí fui fazer ficção até o final dos anos 70. Fiz um
filme interrompido que tinha um lado documental, mas que ao mesmo tempo
eram camponeses e atores. E daí eu parei, fui fazer televisão teve o
golpe de estado tal, tal, tal. Eu larguei o cinema durante dez anos e
voltei para fazer o Cabra [Marcado para Morrer] onde eu fiz um
trabalho de História, de jornalismo, de cinema, tudo misturado. Cabra
tem tudo isso. Cabra tem tudo, pesquisei como um filho da puta.
Trabalhei muito antes de fazer o filme. Sobre a história dos camponeses,
pra saber que perguntas que eu devia fazer. Nos filmes que eu fiz nos
últimos dez anos e tal, não faço pesquisa, não tem que fazer pesquisa.
Eu vou filmar num lixo e simplesmente vou ao lixo conversar com as
pessoas. Isso é bom ou ruim? Você tem que perguntar pra uma pessoa que
tá lá no lixo, isso é bom ou ruim? Porque eu sei que tem aquilo e tem
coisa pior que aquilo.
Em Boca do Lixo, você se surpreendeu com o que as pessoas falaram nos depoimentos?
Não há coisa mais degradante do mundo do que o cara ser filmado catando o
lixo. E tive a reação deles e aí eu dizia ‘e por que?’ E depois eles
diziam os motivos pelos quais trabalham no lixo. Motivos até econômicos,
entende? Enfim, eu tentei ouvir o lado deles. Ninguém diz aqui é bom,
mas muitos dizem “não, mas aqui eu alimentei meus filhos, eu conheci
amigos”, por exemplo. O cara de esquerda supõe que aquilo dali é
horrível, que a culpa é do governo, que a culpa é do capitalismo.
Acontece que eu fui lá aberto e ouvi gente dizendo: “Eu prefiro isso do
que ser empregada”. Tá aí um troço novo. Porque o cara nas condições
terríveis do lixo, pelo menos ele é autônomo, ele não tem patrão.
Alienado ou não, o cara julga um triunfo ele não ter um patrão. No
Brasil inteiro deve ter um milhão de pessoas que vivem na rua vendendo
coisas. E essa noção de liberdade, se é falsa ou não, não importa. O
cara no lixo diz: “Olha eu trabalho aqui, agora sábado eu não venho.
Sábado eu faço feira, não sei o que.” Não ter um patrão. Para quem tem
herança de escravidão é um troço essencial. Tudo no Brasil está ligado
ao troço da escravidão. Isso pesa muito, entende? O horror ao trabalho é
um troço que vem dos 350 anos de escravidão.
Pulando um pouco, o filme que me introduziu ao seu trabalho, foi o Edifício Master…
É onde eu já estou num outro caminho, em que eu não quero dizer que
aquilo ali é o inferno ou o paraíso. Eu quero simplesmente tentar ver
como as pessoas vivem aquilo. Porque como eu não vivo aquilo, se eu
tivesse a minha idade e tivesse morando lá eu dizia ‘pô, fim de linha,
que fracasso’. Depende, as pessoas que eu encontrei lá, tem um
aposentado que esteve nos Estados Unidos, tem pessoas de classe média
que estão lá um período da vida que depois saíram de lá e também foram
para Alemanha, o cacete. Tem de tudo lá: classe média baixa, média e
meia média. Entende? Então o que me interessava era conhecer isso, o que
é viver naquela cidade. Paris, Moscou, Nova York, é tudo igual. Você
encontra a mesma solidão. Um cara que mora numa quitinete e que morre,
dez dias depois alguém encontra pelo cheiro porque era solitário. Se
encontra aqui, se encontra em Nova York, se encontra em todo lugar.
Inclusive a minha tia avô ela mora em um edifício igualzinho a esse...
Em Copacabana?
Em Copacabana!
A maior porcentagem de idosos no Brasil é em Copacabana: tem 15% de
idosos. A razão é muito simples. Tem tudo lá: prostituição, crime, tal.
Mas é um bairro que tem muita vida, tem comércio, tudo é perto. É muito
melhor morar em Copacabana do que no centro da cidade que não tem nada. E
a praia está perto então o velhinho vai lá e passeia. Então morar em
Copacabana, hoje, para aquelas pessoas foi um ganho. É uma coisa
interessante com todos os problemas que tem.
Eu li uma entrevista em que você dizia que, quando você começou a fazer o Edifício Master, sentia medo de não desenvolver uma história boa porque era um bairro de classe média.
Isso aí é porque as pessoas se defendem. Você vai lá na favela e todo
mundo está disposto a falar, eles têm eloquência, têm beleza na fala,
têm a gíria. Cem anos de cultura em favela. A favela é um troço orgânico
e forte em comparação com o asfalto. O exterior/interior não existe,
você está andando e da janela alguém te chama pra entrar, entende? Eles
têm consciência que tem o ‘nós da favela’ e tem o ‘nós do asfalto’. Isso
está ligado, porque eles vivem a vida do asfalto também, vão à praia e
tal mas eles tem consciência do ‘nós’ favelados. Num prédio, ninguém
fala ‘nós’. A diferença é essa. Como é que eu vou dizer ‘nós do meu
prédio’? Eu moro num prédio normal- 30 apartamentos, 35, sei lá. Mas não
vou dizer ‘nós’. Nem conheço quem mora lá, nem quero conhecer ninguém.
As pessoas na favela se conhecem todas, é um outro tipo de vida. Tem
esse lado positivo de formar comunidade, de que é uma vida muito aberta.
Então quem se mata é quem mora no Master, em favela ninguém se mata. Já
ouviu falar em algum suicídio em favela? Eu nunca vi. É impressionante,
não sei se tem estudo sobre isso, mas eu não conheço caso. Um mata o
outro, droga é outra coisa porque o cara é viciado, dependente e guerra
do tráfico é outra coisa. Mas suicídio mesmo, sem razão ou por
depressão, é difícil.
Então por isso eles [os personagens de Master] falavam pouco,
eles riam pouco, tinham pouca riqueza vocabular. Em termos de
experiência de vida também não era tão forte. É por isso que tem 37
personagens – eu tinha que ter quantidade porque eu sabia que não ia ter
personagens maravilhosos como tive em outros filmes que podiam ocupar
dez minutos. Tem 37 pessoas no filme e acho que nenhum chega a cinco
seis minutos. Pessoas que entram por três, quatro minutos. Mas em
compensação é 1 hora e 50 minutos de gente falando.
Quando te veio essa ideia de botar só gente falando?
Isso foi desde que eu voltei a fazer cinema com Santo Forte. Fui fazer
um filme sobre religião mas não queria botar culto nenhum, queria botar
gente falando sobre religião. Daí eu fiz, acabei filmando também culto,
mas acabei tirando e jogando fora. Depois de longas experiências
arrumando e montando, tirei praticamente tudo, mas ainda tem imagens. E
eu fui reduzindo e atualmente tem um filme que não tem imagem nenhuma.
Só tem um preto e tem uma pessoa que fala ou canta. E é chegar no
limite. Filme que só tem pessoas falando como Jogo de Cena. O
próximo vai ser pior ainda, só tem uma pessoa que fala, um corpo
falando. Então atrás você não tem que distrair, mostrar fotografia do
filho, do neto. “Meu filho morreu”, pronto, conta a história do filho. A
pessoa imagina, não preciso da foto do filho. Se é dito, a imagem é
totalmente desnecessária no caso dos filmes que eu faço. Eu trabalho com
cinema que se baseia na palavra. Por isso é muito difícil vender pra
fora. Nunca vendeu. Quem não entende português é difícil, a legenda
passa 60 %. Então é difícil porque meus filmes não vendem.
Você acha que vocês documentaristas são heroicos?
Não, não, não, não. A palavra herói não existe. Vítima e herói: não
existe. Não tem coitadinho. Sabe o pobre, o coitadinho, como são feito
os filmes. “Ah o coitadinho do pobre!” Eu não fui no lixo para tratar de
vítima, senão acaba a relação. Eu vou tratar ele de igual pra igual na
medida que é possível. Eu quero conhecer a sua razão. As minhas razões
para estar aqui eu sei – eu posso, eu quero. Agora quais são as suas?
Cada um tem suas razões para estar em algum lugar para fazer alguma
coisa. Isso que eu quero descobrir. Então a razão do outro me interessa.
Tentar estar no lugar do outro é a chave da questão. É impossível, mas
tem que tentar, e nesse confronto de tentar entender o outro sai um
diálogo que é improvisado, que é inventado, porque você inventa também
quando fala. E não importa, se inventa bem, é verdade. Se é bem
inventado, é verdadeiro e ponto final. “Eu fui feliz”, sei lá se é
verdade. Tá dizendo! Pode ser que daqui um ano diga outra coisa.
Entendeu? Tem que ser inventado com verdade. Quem inventa mal tá fora!
O documentário já existe à margem do cinema brasileiro. E os filmes estrangeiros dominam o mercado brasileiro então…
Tem o Cinema Novo, tem o cinema brasileiro sério que sempre foi marginal
e vai continuar a ser. Tem Globo Filmes e tal, as exceções, mas é 15 %
do mercado. O cinema brasileiro em geral é marginal no mercado. Calcule
os filmes sérios que tem alguma dimensão estética, o que seja, social, o
que seja. São filmes que se tiver 30, 50 mil espectadores já é
extraordinário. No mundo todo o documentário é um lixo pequeno. Pensa
que na França é diferente? Passou um filme que tem 100 mil espectadores e
é extraordinário, é uma festa. Na França! Entende? As pessoas vão ao
cinema para ver histórias inventadas com atores. Baseadas em fatos reais
ou não, mas simplesmente vão para o cinema sonhar. Sempre foi assim. E
agora é sonhar em 3D. E aumentou até o nível de diferença de um cinema
para o outro. Não dá pra competir com os filmes 3D americanos. Não tem
como o brasileiro fazer isso. Agora daí, de repente, pega essa esquema
de novela e tal e faz o filme. São exceções. Mas o conjunto do cinema, o
cinema brasileiro foi, é, e será sempre marginal. O próprio cinema vai
passar a ocupar um lugar marginal. As pessoas vão ver filme aonde? Até
em celular. Entendeu? Então o ato social de ver filme vai ficar menor,
vai ficar como teatro. Ou então filmes que exigem telas gigantescas
IMAX, sei lá. Os caras vão ver lá, vão ver esse tipo de cinema.
Voltando ao Cabra. Você disse antes que você não tem uma intenção
politica com seus filmes. Você diria que nesse filme você teve alguma
intenção politica?
Não tem intenção política na medida que a palavra política é equivocada.
Todo filme é político. Mas eu estou interessado no social, não no
político. Como é que uma sociedade existe? Por que o Brasil é como é?
Por que as pessoas são como são? Primeiro, você tem que saber como as
coisas são para depois se quiser mudar. No Cabra, eu estava fazendo uma coisa que é diferente porque o Cabra tinha
um ato político de fazer o filme, porque tinha história envolvida no
filme. Isto é: minha vida parou com o filme. Esse é o fantasma. Como
parou a vida dos camponeses. Então apresentou para mim uma dimensão
psicológica, é realmente um filme de um caráter politico mas a partir de
uma coisa pessoal também. Peões, não. Qualquer cara pode filmar a greve
dos operários. Eu fui e fiz um filme lá, mas não tem nada ver com
Cabra.
Por isso você quis que o enfoque do peões fossem nos metalúrgicos em vez de políticos?
Tem uma divisão né? Tem a história do Lula e o João [Moreira Salles]
estava interessado e eu não, até pelo fato de que é o tipo de filme que
tem que negociar cada dia o que filmar etc. Tinha que pedir ajuda ao
sindicato foi muito trabalhoso, muito penoso. Cem mil sindicalistas. E
eu tinha que achar gente que o sindicato queria e encontrar gente que
dissesse coisas que não fossem evidentes. Então teve uma limitação. Não
faço mais filme politico, histórico. Em princípio não faço mais.
O Peões deve ter sido difícil porque você estava pegando uma região inteira não era como o Master que você ficou num prédio só…
Esse é o problema, ficou um negócio amplo demais. Só se eu ficasse um
ano fazendo pesquisa que era impossível. A prisão espacial é essencial
para mim. Eu preciso ter uma prisão espacial e naquela prisão eu sou
inteiramente livre. Essa pobreza espacial é essencial pra eu não
procurar ideologicamente aquele cara interessante. Não, nesse prédio eu
tenho que achar um filme. Todos os filmes que eu filmo a regra é essa:
num lugar tem que achar um filme. Até agora pelo menos tenho achado uns
filmes que não são iguais. Mas são sempre num lugar só. Tirando Peões,
todos os filmes que eu fiz recentemente são num lugar só. Numa vila que
tem 80 famílias, num canto de lixo, num teatro de gente que responde a
um anúncio. Se eu não pedir nada para a pessoa fazer e conversar meia
hora com ela, ninguém mais controla se está filmando ou se não está. Não
tem como conversar meia hora e a pessoa ficar engessada. Ou fica e sai
do filme.
Igual àquele momento no Peões que o rapaz está falando e a esposa não quer participar, ela fala mas não quer aparecer.
Isso é extraordinário! Justamente houve uma briga porque o fotógrafo
queria que minha assistente filmasse ela. Eu não quis e ela teve razão
de não ter filmado porque o que me interessava era ela fora [de cena].
Ela sai da filmagem, portanto contra, daí ela às vezes dava palpite. Foi
maravilhoso. Quem está no campo, quem está fora do campo isso é
essencial. Ao lado estava o filho deles que é débil mental. Então tinha,
a meio metro do quadro, no sofá, um filho de vinte anos completamente
nervoso que gemia. Eu até perdi uma sequência interessante porque
entrava o gemido do cara. Você filmando e tinha o cara aqui, a mulher
aqui atrás e aqui do lado do sofá o filho gemendo. Não é que ele está
com dor, o cara tem problemas gravíssimos. E você filma e…pra eles é
normal, eles vivem com aquele filho, então é normal pra mim, e vamos
filmar.
A sua infância teve alguma coisa a ver com seu envolvimento no cinema mais tarde?
Não, eu era cinéfilo, uma pessoa que via filme. Ser cinéfilo é assistir
três filmes por dia, anotar no caderno. Quando eu tinha dez anos eu
fazia isso. Agora era impossível pensar no cinema brasileiro. Eu vi nove
vezes uma chanchada, Carnaval no fogo. O que eu via de cinema
brasileiro era chanchada, carnaval. Isso até 1951, 52. Fora isso eu via
cinema americano, depois argentino, mexicano. Depois neorrealismo, até
que eu fui estudar cinema e passei a me interessar. Mas isso de fazer
cinema foi um passo gigantesco que só foi possível depois que eu voltei
da Europa em 1960, 61 quando o Cinema Novo começou a nascer e se tornou
possível fazer cinema no Brasil. De uma forma marginal, mas de qualquer
maneira uma tentativa de ver o Brasil que não tinha aparecido no cinema
brasileiro de antes. E fora da chanchada que realmente já não precisava
mais porque com a chegada da televisão a chanchada não tinha mais
mercado.
Se o Brasil não fosse não atrasado naquela época teria sido possível você entrar antes no ramo do cinema?
Isso não sei. Antes do Cabra, em que eu já tinha uns 40 anos, tudo que eu fizesse não tinha importância. Só quando eu fui filmar o Cabra que eu me libertei. Tudo que eu fiz antes não importa porque eu não sabia o que eu queria da vida. Quando eu fui fazer o Cabra,
eu sabia o que queria fazer. Trabalhei cinco, seis anos, pesquisa,
filmagem e fiz um filme à altura do que tinha sido a história. Depois
fiquei 15 anos praticamente sem fazer filme até fazer o Santo Forte.
Se o Santo Forte não tivesse tido tanto êxito…
Se não fosse a produção do Santo Forte, eu tava morto. Se a repercussão
crítica fosse ruim ou ninguém fosse ver, é possível que eu desistisse.
Mas a verdade é que eu confiava, sempre confiei no filme falado que era
como era e tal. Meus amigos diziam que era impossível, que ninguém ia
aguentar. Todos os meus amigos, todos. Tirando uma pessoa da equipe,
todos. “Não, é impossível, é uma tortura etc.” Mas foi gravado, foi
aceito e foi maravilhoso. O documentário teve cinco prêmios e o público
foi de 18 mil pessoas, o que até hoje é difícil fazer, e a crítica foi
maravilhosa. Pensei “ Pô, achei, finalmente achei e eu quero continuar a
fazer isso” e fiz e não parei de filmar de lá pra cá.
Tem documentário que mostra um caso isolado, por exemplo, de uma criança
pobre que trabalha nas minas da Bolívia e você como espectador se
sente muito deprimido e culpado. Mas quando você sai dali você não sente
continuidade…
Tem um monte de filmes que se aproximam do outro. Quem é o outro? O
outro é o pobre miserável. O cara com defeito físico, o destituído tal,
tal. E quem filma geralmente é uma pessoa de classe média, mesmo que com
origem proletária. E tem a mania, americano adora isso, de tratar de
forma paternalista. E daí o povo adora e chora e sente culpa. Isso é
coisa que eu me recuso a fazer. Isso é uma coisa proibida em meu
dicionário. Michael Moore, tem uma hora que ele abraça uma mulher lá que
foi vítima, pra que ir lá e abraçar? Você tem que guardar distância da
pessoa, não tem que consolar ninguém. Ou se consola, faz isso fora do
filme. Então existe o “humanismo” entre aspas, que os americanos adoram,
que é filmar o pobre. O cinema humanitário é o pior cinema do mundo. O
humanitário ou de mensagem. Al Gore, ou então, mensagem. E a outra coisa
de americano é essa: se é um filme sobre negra e lésbica tem que ser
filmado por negra e lésbica. Sabe? Iguais filmam iguais. Quando a minha
tese é outra: negro tem que filmar branco e camponês tem que filmar
negro e tem que trocar. Índio tem que começar a filmar branco e
branco…sabe? Nada impede que branco filme índio. Precisa dos dois lados,
um do lado de dentro, um de fora. Não tem sentido que um filme sobre
metalúrgico só pode ser feito por metalúrgico. Isso é uma tolice. O
multiculturalismo que botou isso na cabeça. Então pra filmar uma lésbica
eu tenho que ser lésbica? É o mesmo do mesmo, entende? Não há conflito.
Não vou ao cinema para ser educado, pra aprender o bem. Odeio esse tipo
de coisa tipicamente americana.
Eles colocam aquela narração em off que é uma voz assim divina falando…
Quando tem voz em off é pra tratar da pobre vítima da crueldade, os
mineiros da Bolívia. E tratam de um jeito que é pra fazer o cara ter
culpa, chorar. Não estou fazendo filme pra ONG, pra arranjar dinheiro.
Eu fiz o filme sobre o lixo, ninguém me deu dinheiro pra terminar. Pra
começar sim, pra terminar foi difícil. Por quê? Porque se eu dissesse
que era pra promover um sindicato, eu ganhava. Se fosse catador que
queria fazer um sindicato. Porque esses são os filmes que são
politicamente corretos. Como meu filme não era, era o cotidiano dos
catadores só, ninguém deu dinheiro.
De todos os seus filmes, qual abriu mais portas para você?
Eu me identifiquei com o Cabra. Se não fosse pelo Cabra estava na televisão, TV Globo até hoje, eu estava morto. Fora o Cabra, foi o Santo Forte. Agora, prazer tive em quase todos. Se eu não tivesse prazer eu não fazia. Não sou missionário.
Você acha que Cabra não seria um filme tão bom se não tivesse sido retomado anos depois?
Evidente. Teria sido um documento de época importante mas o filme é um
filme com 70 camadas de sentido histórico. É uma revisão da história do
Cinema Novo, do cinema brasileiro que inclui tudo: jornalismo, história,
cinema, linguagem. Exatamente porque é um filme que conta a história do
filme, cinema e história todo tempo, lado a lado. É extraordinário que
eu consegui, porque eu soube fazer, tive um montador que me ajudou, tive
um fotógrafo que me ajudou a fazer. Enfim, é um filme que aguenta até
hoje porque ele não é um filme triunfalista. Ele lida com uma verdade do
personagem e não com discurso. Os filmes em geral políticos são
triunfalistas, tomamos o poder. Mentira. Jamais faria um filme assim.
Quando se ganha se perde também porque dura dez anos. E esse é um filme
muito chão, muito simples. Cabra tem dispositivos de montagem
extraordinários, tem jornal, manchete, o filme antigo, o filme que eu
filmei na UNE, filmes de outras pessoas. Tem filme americano que eu
roubei pra usar a imagem, que não paguei, graças a Deus. E a aventura
foi essa.
Por que você acha que mudou tanto sua visão entre o primeiro e o segundo filme?
Eu comecei a fazer documentário na TV Globo e eu comecei a descobrir que
era aquilo que eu queria fazer. Aí foi uma escola pra fazer o Cabra
porque a rapidez que se trabalha em televisão me ajudou a fazer isso
depois de uma forma muito mais refinada. Então me ajudou, me educando e
me deseducando. Cabra é um filme de suspense porque eu também não sabia o
que eu ia encontrar. Quando fui filmar [pela segunda vez] eu não via a
Elizabeth [personagem de Cabra] há 17 anos, exatamente o tanto de
tempo quanto o espectador… Fui encontrar 17 anos depois, conhecer os
filhos. Conheci eles quando filmei eles em 1962, 64 e fui lá ver eles
17, 18 anos depois como está no filme. Eu tinha que chegar filmando.(Com
o Brasil de Fato)
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