Todo ser humano tem potencial para produzir arte, todos somos potenciais
artistas. Se uma criança recebe areia, ela esculpe um castelo. Se
recebe tinta, ela pinta um dinossauro. Se estimulada com música, ela
inventa sua própria dança. Mas adultos, a maioria de nós ou não produz
mais arte ou não a produz como gostaria de fazer. Por que isso acontece?
http://comunaquepariu.blogspot.com.br/2014/09/manifesto-por-uma-frente-artistica-anti.html
Basta pensarmos no nosso dia a dia pra darmos de cara com dois motivos.
De um lado, alguém que trabalha oito ou mais horas por dia, gastando
umas boas horinhas a mais pra ir e voltar de seu local de trabalho,
infelizmente não tem muito tempo para dedicar a outras atividades, ainda
que goste muito delas. Nessa situação, apreciar e conhecer ou mesmo
criar arte aparece como algo “supérfluo”, não passando de um “hobby” pra
ser exercitado entre uma jornada e outra, e, se der, em algum espacinho
de tempo no fim de semana... Além disso, um monte de gente simplesmente
não frequenta teatros, shows, exposições ou certos pagodes e estádios
porque se tornam pesados demais no orçamento (na sociedade em que
vivemos tudo, até as tradições mais populares, vai virando mercadoria).
O outro motivo está ligado ao que chamamos de indústria cultural. E aí
tratamos da situação dos trabalhadores da cultura (como os “artistas” ou
os “produtores culturais”). Todo o fruto de sua criatividade acaba
servindo pra alimentar esta indústria; e nisso há uma perda de sentido
sobre o que fazem, pois cada vez mais se tornam meros executores levados
a produzir algo que não é determinado por sua própria vontade, mas que
se encaixe em um padrão vendável. Uma canção precisa ser “hit”, para
vender; um quadro precisa ter o estilo que abra as portas pra galerias
importantes, para vender; uma peça de teatro deve repetir os "lugares
comuns" e efeitos fáceis, para vender. A cultura é reduzida a um
negócio, cumprindo a função social de fornecimento de “matéria-prima
criativa” para certas indústrias nas quais os bens produzidos têm valor
ou não de acordo com as tais “leis do mercado”. Até mesmo o sucesso de
uma obra artística tende a ser medido pelo lucro que ela proporcionou!
Isso está presente tanto nas listas que tratam por melhores filme do ano
aqueles com maior bilheteria, quanto na indústria do jabá radiofônico,
na qual as músicas primeiro são pagas para serem as mais tocadas nas
rádios e depois se tornam "magicamente" presentes no assovio de qualquer
ouvinte. Quantas vezes já não vimos repetidas essas velhas práticas?
Tudo isso se dá porque vivemos em uma sociedade em que nós trabalhadores
não controlamos os meios necessários para garantir as nossas próprias
vidas. Nas sociedades capitalistas, cada indivíduo depende de comprar no
“mercado” todas as suas necessidades: sua comida, suas roupas, sua
moradia, seu deslocamento, só podendo satisfazê-las se puder pagar. A
quantidade de fome que você tem simplesmente não é levada em conta pelo
dono do supermercado, assim como a enorme "fome cultural” que você tem
não comove nem um pouco o proprietário da casa de shows – ou mesmo que o
comova, isso não o levará a distribuir bilhetes! Isso gera certas
situações que seriam inaceitáveis se não estivéssemos tão acostumados
com elas, e os exemplos são incontáveis – basta refletir meio segundo na
porta de um supermercado qualquer, e verificar, na calçada, à porta de
sua entrada, quantas vezes não estavam ali pessoas em situação de rua
pedindo ajuda.
No mercado de arte, vão se formando campos autorizados a dizer o que é e
o que não é bom ou válido. A arte, para ser reconhecida como arte,
precisa do consentimento dos produtores, dos curadores, dos comissários
de exposição, dos conservadores de arte, das gravadoras, das estações de
rádio, dos grandes chefs de cozinha, das editoras etc. Neste contexto, a
arte dos pobres, dos negros e dos indígenas é diminuída pelos que detêm
“o poder da palavra” ao status inferior de “artesanato”. Essa oposição
entre artesanato e arte expressa todo o desprezo dos mandarins da
cultura mercantilizada pelo trabalho manual e pela cultura popular. A
arte parece estar ao acesso de todos, mas o que está ao alcance é
somente o seu consumo para quem puder pagar! E quanto à criação, essa
fica só pros artistas “eleitos” pelo mercado em um de seus diversos
nichos (inclusive o mercado acadêmico, considerando que a universidade
se torna cada vez mais mercantilizada), deixando à margem inúmeros
músicos, compositores, arranjadores, poetas, pintores, atores,
diretores, num autêntico desperdício de capacidades criativas-sociais
que este modelo simplesmente é incapaz de aproveitar.
É no contexto da competição entre os próprios artistas, uns contra os
outros, por um lugar no rol daqueles “eleitos”, que surge a imagem falsa
do “gênio”. Este seria o ser “melhor do que os outros”, que tem “mais
talento” individual e por isso “merece aparecer”, sendo celebrado do
mesmo modo na dança, na música, na culinária ou no futebol. Ok,
entendido, mas... o que seria de um bom ator se ele atuasse sempre
sozinho?! Não é questão de negar as aptidões individuais. Sim, elas
existem, mas são muito mal aproveitadas numa sociedade em que todos os
criadores (o que é exatamente o mesmo que dizer todos os trabalhadores,
quer manuais quer intelectuais) são postos em eterna competição uns
contra os outros por um lugar no mercado. Nesta sociedade, o
egocentrismo radical vai ocupando o lugar da camaradagem, a pretensa
autoria individual ocupa o lugar da criação coletiva, e com isso a
imensa maioria da população, inclusive dos artistas, perde – enquanto
alguns poucos grandes “produtores”, na verdade proprietários ou
acionistas de grandes empresas culturais, extraem seus lucros
milionários e mantêm o tal do mercado de arte azeitado e operando.
As jornadas de junho de 2013 trouxeram à tona certa insatisfação social,
com milhares de pessoas indo às ruas reivindicar o atendimento de suas
necessidades. Este novo contexto não deixou de influenciar o mundo da
cultura e da arte. O carnaval de 2014 foi marcado por blocos, marchinhas
e sambas politizados e de protesto, as manifestações se tornaram tema
de diversos filmes documentários, peças de teatro ou poesias e as
fotografias dos manifestantes e da repressão policial rodaram o mundo.
Essa tomada de consciência pode ser um bom começo de um questionamento
geral, mas, para impedir que essa saudável energia questionadora se
disperse, vimos a necessidade de começar pra já a construir uma
alternativa. Uma alternativa ao poder político que nos apresenta um jogo
de cartas marcadas e nos manda sair das ruas (com a “ajuda” da polícia)
e votar em algum dos candidatos dos grandes partidos que representam
sempre os mesmos interesses. Uma alternativa aos governos que nos pedem
para aguardar passivamente que eles apresentem a “solução” para nossos
problemas. Uma alternativa, enfim, a toda uma forma de organização
social capitalista que exige que os trabalhadores empreguem o melhor de
suas energias vitais na produção de mercadorias para depois descansar
consumindo passivamente sem protestar. Isso quando lhes é dado
descansar...
Uma primeira alternativa seria lutar por uma mudança da política
cultural do Estado que rompesse com os seus atuais marcos
mercadológicos, cujos principais exemplos são a Lei Rouanet (dinheiro
público de renúncia fiscal que é gerenciado por empresas privadas) e o
estímulo ao empreendedorismo dos trabalhadores da arte (estimulando-os a
fazer projetos para captar recursos no mercado), e investisse em um
amplo aparato público e gratuito de formação, produção e distribuição de
arte. Mas pensamos que é necessário ir além e criar organizações
culturais e artísticas próprias dos trabalhadores. Já existem diversas e
o Bloco Comuna Que Pariu! é um bom exemplo de um grupo que produz uma
arte anticapitalista por fora da indústria cultural. Mas o trabalho de
grupos isolados, por melhor que seja, tende a não ter muita repercussão
em uma sociedade na qual a circulação de informações e da arte é
dominada pelos grandes monopólios empresariais.
Por isso, propomos a formação de uma frente anticapitalista que afirme
que a arte não deve ser mercadoria, mas expressar necessidades coletivas
e apontar para a necessidade de criação de relações sociais que
garantam a vida. Como primeiro passo nesta direção estamos formando um
Comitê de Cultura pelo Poder Popular para discutir e produzir arte e
cultura por fora da lógica da mercadoria, buscando construir uma
alternativa cultural própria dos trabalhadores que seja capaz de
enfrentar a indústria cultural e caminhar no sentido da socialização da
produção cultural e artística. Venha organizar conosco este Comitê!
Proposta inicial de eixos programáticos para a atuação do Comitê:
1º Participar das lutas gerais da classe trabalhadora, inclusive colocando nossa arte ao seu serviço;
2º Garantir e avançar os direitos dos trabalhadores da arte e da cultura;
3º Desmercantilizar a produção e o acesso à arte e a cultura;
4º Construir uma alternativa cultural dos trabalhadores que seja capaz
de enfrentar a indústria cultural (o poder popular na cultura);
5º Articular uma frente artística anticapitalista que aponte para a
necessidade de criação de relações sociais que garantam a vida;
6º Apoiar e aprender com outras experiências culturais e artísticas da classe trabalhadora, nacionais e internacionais;
7º Venha sugerir e debater conosco!