Negra e moradora da favela do Canindé, Carolina é autora de
Quarto de Despejo, onde retratou o cotidiano da comunidade na década de
1950; Promovidas pela Edições Toró, em outubro, ciclo de atividades
inclui oficinas, roda de sambas, debates, filmes e intervenções cênicas
08/10/2014
Por Simone Freire,
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/30088
"Todos
têm um ideal. O meu é gostar de ler". Nestas palavras, Carolina Maria
de Jesus (1914-1977) resume sua trajetória e propósito de vida.
Semi-analfabeta, negra e moradora da favela do Canindé, Zona Norte de
São Paulo (SP), Carolina tornou-se escritora reconhecida dentro e fora
do Brasil com o livro "Quarto de Despejo - Diário de uma
Favelada", publicado em 1960. Com uma literatura viva e pulsante, soube
pautar as complexidades e contradições da sua realidade.
Em 2014,
a escritora completaria cem anos de idade. Uma série de atividades e
homenagens foi realizada pelo País e, em complemento a elas, neste mês
de outubro, mais um ciclo busca celebrar a vida e obra da escritora.
Promovidas
pela Edições Toró, atividades como oficinas, roda de sambas,
mesas-redondas, debates, filmes, intervenções cênicas e leituras têm
sido realizadas em diversos pontos de São Paulo (SP).
Segundo o
educador e escritor Allan da Rosa, um dos organizadores do ciclo, este
tipo de atividade tem um propósito muito especial, uma vez que enormes
referências da literatura “são ainda, no geral, mais comentadas do que
lidas”. Ele lembrou que outra série de atividades deve acontecer em
novembro para celebrar o centenário de Abdias do Nascimento (1914-2011),
conhecido pela luta em defesa da igualdade racial.
O papel do
mercado editorial também foi lembrado por ele. “No ano de seus
centenários, o sistema editorial que domina o mercado ainda permanece
muito distante e pouquíssimo interessado por seus trabalhos, estilos,
histórias e questões, assim como ocorre com várias outras canetas
negras, de ontem e de hoje”, comenta, lembrando que “recentemente, a
atual gestão da Biblioteca Mário de Andrade vem buscando trançar e
fertilizar caminhos com os movimentos literários das beiradas de São
Paulo”.
Vida e Obra
Apesar
de pouco estudo e a incessante e cansativa rotina de catadora, Carolina
Maria de Jesus acumulou mais de 20 cadernos com testemunhos sobre o
cotidiano da favela. Deles, após edição do jornalista Aldálio Dantas
(que a descobriu ao visitar a favela para uma reportagem), originou-se
"Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", publicado em 1960.
O
livro rompeu com qualquer rotina das edições até então publicadas no
País. Em poucos meses, três edições foram lançadas, chegando alcançar a
margem de 100 mil livros vendidos, além de ser traduzido para 13
línguas, como romeno, russo, japonês, inglês, sueco e alemão.
Carolina
publicou ainda “Casa de alvenaria”, “Journal de Bitita“ (póstumo, 1982,
França) e “Meu estranho diário” (também póstumo, 1996, organizado por
José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine)
Literatura viva
Embora o cenário descrito por ela na década de 1960 não seja o mesmo de hoje, Quarto de Despejo
é contundentemente atual, uma vez que a luta por melhores condições de
vida e dignidade ainda permanecem entre os "trastes velhos" como,
criticamente, caracterizava os favelados. “Eu denomino que a favela é o
quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes
velhos”, escreveu.
“O lugar, o olhar, a fala e a escrita da
Carolina são atuais e cortantes. Carolina não só aborda temas, ela os
vivenciou intensamente e ainda assim escreveu dolorosamente, mas sem
perder a poesia. Se estivesse viva, Carolina não pouparia ninguém graúdo
e poderoso, iriam todos parar no seu diário com as piores referências
porque ainda latejam a luta por moradia e creches, contra o racismo
institucional, a violência da discriminação religiosa, a repressão
policial aos pobres e o genocídio sistemático da população negra”,
descreve Allan da Rosa.
Legado
Sair da
favela e arriscar-se em um cenário tão elitizado, como era o literário
na época, não foi uma tarefa fácil para a catadora. Ora endeusada, ora
considerada porta voz dos pobres, e tantas outras vezes tratada apenas
como “uma favelada”, sua escrita, por muito tempo, se não ainda hoje,
foi questionada e desconsiderada por vários críticos.
No entanto,
a realidade mostrou que a paixão de Carolina pela leitura é exemplo
para escritores e escritoras, sejam da periferia ou não. Sua vida e obra
foram temas de diversos trabalhos acadêmicos, além de torna-se um
legado para gerações atuais.
“Ela era uma mulher sonhadora, a
frente do seu tempo. Não concordo quando vestem em Carolina a militância
que ela não tinha. Carolina foi sim, porta voz de diversos descasos e
escrevia maravilhosamente bem sobre tudo que assolava. Entendia que a
questão da cor também interferia no fato de ser moradora de favela. Mas,
um legado importante também é que ela falava da pobreza sem louvá-la,
sem hipocrisia, e dizia que queria moradia melhor, queria se vestir
melhor, comer melhor. Eu enxergo Carolina como uma mulher negra, mãe,
não conformada em ser mais uma. Foi uma mulher que deixou um legado a
todas nós mulheres negras periféricas: a escrita, o poder, o ser. Ela
foi e é, sem sombra de dúvidas, inspiração pra rompimentos. Eu escrevo
hoje e foi sim legado de Carolina”, conta a escritora Raquel Almeida.
Confira a programação das atividades em São Paulo:
>>> Quarta-feira, 08 de outubro
19h às 22h – “NA ALVENARIA SAMBANDO A BITITA: CAROLINA ALÉM DE ‘QUARTO DE DESPEJO”
Exibição do filme: “O papel e o mar”, de Luiz Antônio Pilar (Brasil, 2008)
Mesa redonda:
“Sobre ‘Casa de Alvenaria’”, com Fernanda Miranda (mestre em Letras, pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
“Carolina, personagem teatral”, com Lucélia Sérgio (Atriz e diretora na Cia Os Crespos)
“Sobre “Diário de Bitita e as músicas de Carolina” Com Flavia Rios (Socióloga, pesquisadora da vida e obra de Carolina de Jesus)
Mediação: Ruivo Lopes
Intervenções de Janette Santiago
Onde? Na Biblioteca Mario de Andrade – Rua Coronel Xavier de Toledo, centro de São Paulo
>>> Quarta-feira, 22 de outubro
19h às 22h – “CAROLINA DE JESUS, LETRA QUE ARRANHA, ESPETA E FERTILIZA”
Mesa Redonda:
“Textos de sangue – o estilo e o abalo”, com Mário Augusto (Professor da UNICAMP, sociólogo)
“Carolina, suas armas, horizontes e rastros”, com Jarid Arraes (cordelista, pesquisadora e jornalista)
“Carolina,
sujeira no circuito editorial brasileiro?”, com Marciano Ventura
(escritor e editor, criador do selo “Ciclo Contínuo”)
Mediação: Allan da Rosa
Onde? Na Biblioteca Mario de Andrade – Rua Coronel Xavier de Toledo, centro de São Paulo
>>> Sábado, 25 de outubro
16h às 20h – “CAROLINA DE JESUS, A ARQUITETURA DA SOBREVIVÊNCIA E DO REVIDE”
Intervenção cênica de Débora Garcia.
Projeção do filme “Vidas de Carolina”, Jessica Queiroz (Brasil, 2013)
Mesa redonda:
“ Gritos e sussurros negros de Carolina”, com Débora Garcia (Atriz, poeta, presidente da Associação Literatura no Brasil)
“Ironia e drama em Quarto de Despejo”, com Fernanda Sousa (Professora e pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
“Dúvidas e frestas na letra de Carolina”, com Raffaella Fernandez (Pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
Mediação: Allan da Rosa
Onde? Comunidade Mauá – Rua Mauá, nº 342, Luz, ao lado da estação Luz de trêm/metrô
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