Camaradas:
Não sei bem se o que lhes vou dizer
nesta conversa ligeira combina com o título dela, anunciado no jornal.
Escapou-me a notícia, é possível que me afaste um pouco da matéria
comunicada aos leitores.
Bem. Para não estarmos com prólogos,
entro no assunto e declaro que, na minha fraca opinião, antes de vermos
no livro um veículo de cultura, devemos considerá-lo simples mercadoria.
Evidentemente ele não é uma graça de Deus, como a luz do sol e a água
da fonte: encerra o esforço de numerosas pessoas, do trabalho complexo
do autor à rija labuta do impressor. Sem levarmos em conta as fases
anteriores e posteriores a isso: a fabricação do papel, da tinta, das
máquinas, dos cordéis; a distribuição, a propaganda e até o que neste
momento realizamos, pois, confessemos honestamente, exercemos aqui o
ofício de camelôs.
Esta minha declaração chocha retira ao
livro, objeto pouco mais ou menos inútil à massa e apenas acessível aos
iniciados, o caráter de coisa misteriosa a que desde a infância nos
habituamos. Criou-se uma espécie de tabu vantajoso à classe dominante: a
sabedoria dos compêndios foi durante séculos e continua a ser meio de
opressão. Sujeitos hábeis reuniram ideias safadas e adularam, sem
nenhuma vergonha, os seus patrões horrorosos. A imprensa sadia é
instituição velha, anterior aos tipógrafos, já usada pelos escribas do
Egito.
Deixemos os escribas do Egito. Se
meter-me em funduras, daqui a pouco estarei falando difícil, empregando a
linguagem que desvia dos pensamentos arrumados na folha o homem da
multidão. Volto ao que afirmei no começo: o livro é mercadoria. As
metralhadoras também são mercadorias, que, até hoje utilizadas contra o
povo, irão resguardá-lo. É intuitivo, porém, que de nada servirão se ele
não souber manejá-las.
A verdade é que nem todos os livros
cantam loas aos tiranos. A desgraça dessa gente é perceber que as suas
armaduras racham, a sua força se esvai, os seus defensores se
transformam de repente em inimigos. A palavra escrita é arma de dois
gumes. A literatura velha arqueja e sucumbe; a literatura nova fere com
vigor a reação desesperada. Não nos ocupamos da primeira, está visto;
deixaremos que se enterre, no silêncio, na penumbra e no mofo, com algum
latim resmungado pelos críticos da LEC.(2) A segunda é a que nos traz a
esta sala, encerra-se nos volumes aqui expostos. Precisamos conhecê-la
de perto. É claro que nada ganharemos olhando, com respeito, esses
volumes protegidos por uma vitrina. Indispensável sabermos o que há
dentro deles. Vimos numa capa o nome de Máximo Gorki e experimentamos o
desejo de largar uns palpites sobre ele, atrapalhando tudo. Recuamos a
tempo — e na reunião da célula ouvimos, bastante chateados, referências
ao admirável russo, num informe. Contudo, a recordação da vitrina
permanece, garantimos que Máximo Gorki é notável. Temos de cor uma lista
de personagens célebres, afirmamos a celebridade, mas seria difícil
dizermos em que ela se baseia. Asserções que nos fizeram na escola,
repetidas longamente, foram aceitas afinal. Em vão tentamos adivinhar
como subiram certos figurões das letras nacionais. Vi um tipo quase
chorar lendo a notícia da morte de um literato conde.
Necessário conhecermos a razão dos
nossos entusiasmos, não nos comovermos à toa. Vamos ver se a página
impressa é digna de admiração. Tratemos, pois, de adquiri-la: é para ser
vendida que se exibe além do vidro. Terra de leitura escassa. Vemos
filas para banha, açúcar, pão, carne, o diabo, mas não conceberíamos
fila diante de uma livraria. Realmente ali não se vendem comestíveis.
Contudo é bom um sujeito ler algumas vezes, ao menos para fingir
importância na presença do chefe ou da namorada.
Literatura ao alcance da massa? Muito
bem. O livro está perto, à mão, na vitrina. Foi redigido cuidadosamente:
no interior dele não há cercas de arame farpado, evitaram-se atoleiros,
rios cheios, pedras escorregadias e pinguelas, enfim qualquer
inteligência razoável pode transitar ali facilmente, por todos os lados.
Agora esperemos que o homem do povo se mexa, dê alguns passos até o
balcão da livraria, peça o volume. E pague, naturalmente, pois os
cidadãos que mourejam naquilo não vivem no éter.
Rio, 28 de fevereiro de 1947
IN: RAMOS, Graciliano. Garranchos [organização de Thiago Mio Salla]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 293.
- – - – -
Notas
1. Arquivo Graciliano Ramos, Manuscritos, Discursos, not. 12.22A.
Título atribuído pelo organizador. Palestra proferida por Graciliano no
comitê distrital Santos Dumont, órgão pertencente à estrutura do PCB, no
dia 1° de março de 1947. Segundo o jornal Tribuna Popular, tal
fala, intitulada “Cultura a serviço do povo”, se deu no contexto da
“Campanha do livro”, promovida pelo Partidão, que pretendia, sobretudo,
estimular a venda de obras das editoras de orientação comunista Vitória e
Horizonte. Na oportunidade, o escritor alagoano foi homenageado pelo
jornalista Astrojildo Pereira (GRANDE INTERESSE desperta a “Campanha do
livro”. Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1947, p. 3).
2. Referência à Liga Eleitoral Católica (LEC), uma associação civil
de caráter nacional criada em 1932, no Rio de Janeiro, por dom Sebastião
Leme da Silveira Cintra, com o auxílio de Alceu Amoroso Lima. “Seu
objetivo era mobilizar o eleitorado católico para que este apoiasse os
candidatos comprometidos com a doutrina social da Igreja nas eleições de
1933 para a Assembleia Nacional Constituinte e de 1934 para a Câmara
Federal e as assembleias constituintes estaduais” (KORMIS, Mônica. LIGA
ELEITORAL CATÓLICA (LEC). In: ABREU, Alzira Alves de et al [coords.]. Dicionário histórico-biográfico brasileiro — Pós-1930.
Rio de Janeiro: CPDOC, 2010). Atuou ainda nos pleitos presidenciais de
1945 e de 1950, bem como nas eleições para a Assembleia Constituinte de
1946.
Nenhum comentário:
Postar um comentário