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quarta-feira, 13 de abril de 2011

Uma análise histórica sobre o Luxo e a Sociedade de Corte européia do século XVII através da obra literária A Roupa Nova do Rei de Hans Christian Andersen

Uma análise histórica sobre o Luxo e a Sociedade de Corte européia do século XVII através da obra literária A Roupa Nova do Rei de Hans Christian Andersen.

Nana Krishna Andrade


Todos querem mais do que podem,
Nenhum se contenta com o necessário,
Todos aspiram ao supérfluo,
E isto é o que se chama luxo.

Padre Antonio Vieira.

No século XIX, um escritor dinamarquês de nome Hans Christian Andersen escreveu um conto infantil que representava bem as atitudes de um provável rei absolutista da Europa do século XVII. A Roupa Nova do Rei relata a história de um monarca muito vaidoso e muito afeiçoado as suas roupas e as novidades da moda. Há ainda, no conto, elementos que identificam a Sociedade de Corte e a sua ambição pelo luxo e pela ostentação, características típicas do Estado Absolutista barroco.

O conto se inicia com a chegada de dois mercadores espertalhões ao reino, e que tentando se passarem por tecelões e alfaiates de prestigio, oferecem um tecido de rara beleza ao rei. Este tecido, porém, contém qualidades mágicas: só poderia ser visto por pessoas competentes e inteligentes, tornando-se invisível aos olhos dos imbecis e incompetentes. Logo, o rei fica maravilhado com as qualidades do tecido e todos os súditos do reino também se encantam com tal objeto raro. (ANDERSEN, p. 141, 1994)

Já nesses primeiros momentos do conto, observam-se elementos típicos de uma sociedade européia moderna e de um reino absolutista. Há nesse momento histórico na Europa do século XVII, uma secularização, ou seja, o poder político do Estado já não compartilha plenamente as suas decisões com a Igreja. O monarca se constitui o poder absoluto, a cabeça de um Estado corporativo.

Sendo o rei absolutista o poder central, ele não devia tantas obrigações a Igreja Católica. No conto, o tecido especial oferecido ao rei era um objeto mágico: tornava-se visível e invisível. Em tempos feudais tal objeto seria questionado quanto a sua natureza mística. Provavelmente o tecido e os mercadores iriam ser censurados por membros eclesiásticos. O tecido mágico seria considerado objeto do demônio e os mercadores seriam julgados por bruxaria.

Contudo, na fábula de Andersen, a despeito dos julgamentos religiosos, a vontade do rei prevaleceu, e ele adquiriu a fazenda mágica.

O conceito de luxo, da ostentação da riqueza já era um fenômeno histórico de épocas antigas, mas vai ser na Europa Moderna, que passava por uma transição econômica do modo de produção feudal para o capitalista, que este conceito vai achar seu campo mais fértil. Ser nobre significava possuir o que havia de mais belo, viver cercado de artigos maravilhosos, de pompas, como forma de afirmar posições de prestigio e superioridade.

[...] Não há sociedade estatal – hierárquica sem as escaladas dos signos faustosos da desigualdade social, sem os sobrelanços ruinosos e as rivalidades de prestigio pelos consumos improdutivos. Max Weber e Norbert Elias já sublinharam fortemente: nas sociedades aristocráticas, o luxo não é algo supérfluo, é uma necessidade absoluta de representação decorrente da ordem social desigual. (LIPOVETSKY, p.34, 2005).



O rei do conto de Andersen se encanta com a possibilidade de adquirir algo totalmente novo e exótico para sua coleção de roupas e artigos de luxo. Em uma tentativa de exibir a novidade, de ser glorificado e imortalizado pelo evento de possuir algo inovador e de ostentá-lo, ele realizará o desfile para a exibição de seu traje.

Há nesse aspecto do luxo, retratado pela obra literária, elementos que indicam uma mudança na mentalidade do homem moderno: o luxo se tornou sensual. Há o apego estético por coisas belas, o profano se sobressai ao sagrado, há o erotismo dos bens raros. “O processo de desclericalização das obras abriu os caminhos modernos da individualização e da sensualidade do luxo. Ele entrou em seu momento estético.” (LIPOVETSKY, p.37, 2005).

A moda surge nesse contexto europeu, na metade do século XIV. Esse contexto de valorização do luxo e das mudanças na tradição, no apego pela inconstância e pela frivolidade. Já nos séculos XVI e XVII vai se estabelecer, e indicar as formas como a Sociedade de Corte se apresentava e se impunha. No conto, o rei já é dominado por esse novo emblema da moda. “Há muitos e muitos anos, vivia um imperador que só se preocupava em vestir roupas caras e elegantes, gastando com essa vaidade todo o dinheiro que tinha.” (ANDERSEN, p. 140, 1994).

Sobre a moda surgida na Europa Moderna, o filósofo Gilles Lipovetsky afirma:

O aparecimento da moda é a lógica do jogo e da festa (excesso, desperdício) anexando pela primeira vez a arquitetura da toalete. [...] Com a moda instala-se a primeira grande figura de um luxo absolutamente moderno, superficial e gratuito, móvel, liberto das forças do passado e do invisível. (p.40, 2005).

Além das questões do luxo e da moda, outra característica do Estado Absolutista europeu observado no conto é a Sociedade de Corte, surgida na Europa centro-ocidental, em um período de transições econômicas, políticas e sociais, aproximadamente durante os séculos XVI e XVII, se caracterizava por ser uma sociedade hierarquizada, de cargos, elites, e de protocolos e manuais de etiqueta que regulamentavam a vida aristocrática.

Esses manuais de etiqueta, códigos de boa conduta, e diplomacia regiam os comportamentos dos cortesãos e da monarquia. E se tornaram sinônimos, também, de uma diferenciação de classes e de mudanças de elementos éticos e morais, já que os manuais que divulgavam essa nova forma de relações entre o meio e as pessoas, circularam quase que exclusivamente entre os membros das cortes.

Na sociedade de corte existiam muitas disputas pelos cargos de confiança do rei, pelas posições de poder, pelos ministérios. A incessante luta entre os nobres para se manterem no círculo de prestigio do monarca fazia com que certas alianças fossem fortalecidas e que certas “artes” como a arte de observar e de manipular os outros, estudadas por Norbert Elias, fossem aprimoradas.

Um perfeito cortesão é senhor dos seus gestos, dos seus olhos, do seu rosto; é profundo, impenetrável; dissimula os maus ofícios; sorri aos inimigos, oculta sua má disposição, mascara as suas paixões, contraria o coração, fala e age contra os seus sentimentos. (SAINT-SIMON apud ELIAS, p.28, 1987)

Na trama de Andersen, quando o rei pede ao seu Primeiro Ministro que supervisione a confecção de sua roupa, o rei objetiva testar a competência do seu ministro. Este, porém se vê numa situação difícil, pois constata que não consegue enxergar a roupa feita do tecido mágico. Sua reação será, obviamente, não se entregar na sua ignorância e fingir para os falsos alfaiates que consegue vê a vestimenta com todo seu esplendor.

Tem se aí, nessa passagem do conto A Roupa Nova do Rei, um exemplo da arte de observar as pessoas e se preservar manipulando a situação, usando da diplomacia como um meio de defesa do seu cargo político. Isso vai acontecer novamente, na história, com o conselheiro e com o próprio rei, que não vendo a roupa pronta, simularão a satisfação de vê-la. Certamente, os falsos tecelões se aproveitam do código de etiqueta e das posições frágeis da nobreza em assumirem suas fraquezas.

O conto se conclui com o desfile do rei vestindo o traje mágico e invisível. Todos os seus súditos fingem ver o rei com suas roupas e elogiam seus trajes. Ninguém teria coragem de contrariar um rei absoluto, e que estava na realidade nu. Mas uma criança grita no meio da multidão que o rei estava nu. Logo todos os súditos do reino concordam com o julgamento infantil e se rebelam contra o rei e sua atitude ridícula ocasionada por sua vaidade desmedida.

O imperador estremeceu, caindo em si e compreendendo que havia sido logrado. Sem nada dizer, seguiu em frente, pensando: “Tenho de agüentar firme até o final do desfile”. E lá se foi ele, caminhando de cabeça erguida, enquanto os dois camareiros reais seguiam atrás, segurando as pontas da cauda do manto que não existia. (ANDERSEN, p.145, 1994).



As classes mais baixas do reino absolutista desconheciam ou não partilhavam dos códigos de boa maneira da Sociedade de Corte. Como no exemplo do texto de Hans Christian Andersen, o rei é respeitado por sua posição ímpar até seu julgamento, pelos seus súditos, no desfile. Mas a atitude do rei é a mais acertada, sabendo ele de seu lugar na sua sociedade. Por fim ao desfile assim como começou, com sua postura de superioridade implacável, significa ao rei, antes de tudo, assegurar sua permanência no poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSEN, H. C. A Roupa Nova do Rei. In.: ___.Contos de Andersen. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 1v.

ELIAS, Norbert. O rei no seio da Sociedade de Corte. In.: ___. A sociedade de corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1987. 240p.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: volume 1 : uma história dos costumes. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990- 277p.


LIPOVETSKY, Gilles; ROUX, Elyette. Artes, antiguidades e frivolidades. In.: ___. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 195p.

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