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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Centenário de Maria Carolina de Jesus




Negra e moradora da favela do Canindé, Carolina é autora de Quarto de Despejo, onde retratou o cotidiano da comunidade na década de 1950; Promovidas pela Edições Toró, em outubro, ciclo de atividades inclui oficinas, roda de sambas, debates, filmes e intervenções cênicas
08/10/2014
Por Simone Freire,
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/30088

"Todos têm um ideal. O meu é gostar de ler". Nestas palavras, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) resume sua trajetória e propósito de vida. Semi-analfabeta, negra e moradora da favela do Canindé, Zona Norte de São Paulo (SP), Carolina tornou-se escritora reconhecida dentro e fora do Brasil com o livro "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", publicado em 1960. Com uma literatura viva e pulsante, soube pautar as complexidades e contradições da sua realidade.
Em 2014, a escritora completaria cem anos de idade. Uma série de atividades e homenagens foi realizada pelo País e, em complemento a elas, neste mês de outubro, mais um ciclo busca celebrar a vida e obra da escritora. 
Promovidas pela Edições Toró, atividades como oficinas, roda de sambas, mesas-redondas, debates, filmes, intervenções cênicas e leituras têm sido realizadas em diversos pontos de São Paulo (SP).
Segundo o educador e escritor Allan da Rosa, um dos organizadores do ciclo, este tipo de atividade tem um propósito muito especial, uma vez que enormes referências da literatura “são ainda, no geral, mais comentadas do que lidas”. Ele lembrou que outra série de atividades deve acontecer em novembro para celebrar o centenário de Abdias do Nascimento (1914-2011), conhecido pela luta em defesa da igualdade racial.
O papel do mercado editorial também foi lembrado por ele. “No ano de seus centenários, o sistema editorial que domina o mercado ainda permanece muito distante e pouquíssimo interessado por seus trabalhos, estilos, histórias e questões, assim como ocorre com várias outras canetas negras, de ontem e de hoje”, comenta, lembrando que “recentemente, a atual gestão da Biblioteca Mário de Andrade vem buscando trançar e fertilizar caminhos com os movimentos literários das beiradas de São Paulo”.

Vida e Obra
Apesar de pouco estudo e a incessante e cansativa rotina de catadora, Carolina Maria de Jesus acumulou mais de 20 cadernos com testemunhos sobre o cotidiano da favela. Deles, após edição do jornalista Aldálio Dantas (que a descobriu ao visitar a favela para uma reportagem), originou-se "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", publicado em 1960. 
O livro rompeu com qualquer rotina das edições até então publicadas no País. Em poucos meses, três edições foram lançadas, chegando alcançar a margem de 100 mil livros vendidos, além de ser traduzido para 13 línguas, como romeno, russo, japonês, inglês, sueco e alemão.
Carolina publicou ainda “Casa de alvenaria”, “Journal de Bitita“ (póstumo, 1982, França) e “Meu estranho diário” (também póstumo, 1996, organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine)
Literatura viva
Embora o cenário descrito por ela na década de 1960 não seja o mesmo de hoje, Quarto de Despejo é contundentemente atual, uma vez que a luta por melhores condições de vida e dignidade ainda permanecem entre os "trastes velhos" como, criticamente, caracterizava os favelados. “Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos”, escreveu.
“O lugar, o olhar, a fala e a escrita da Carolina são atuais e cortantes. Carolina não só aborda temas, ela os vivenciou intensamente e ainda assim escreveu dolorosamente, mas sem perder a poesia. Se estivesse viva, Carolina não pouparia ninguém graúdo e poderoso, iriam todos parar no seu diário com as piores referências porque ainda latejam a luta por moradia e creches, contra o racismo institucional, a violência da discriminação religiosa, a repressão policial aos pobres e o genocídio sistemático da população negra”, descreve Allan da Rosa.
Legado
Sair da favela e arriscar-se em um cenário tão elitizado, como era o literário na época, não foi uma tarefa fácil para a catadora. Ora endeusada, ora considerada porta voz dos pobres, e tantas outras vezes tratada apenas como “uma favelada”, sua escrita, por muito tempo, se não ainda hoje, foi questionada e desconsiderada por vários críticos.
No entanto, a realidade mostrou que a paixão de Carolina pela leitura é exemplo para escritores e escritoras, sejam da periferia ou não. Sua vida e obra foram temas de diversos trabalhos acadêmicos, além de torna-se um legado para gerações atuais.
“Ela era uma mulher sonhadora, a frente do seu tempo. Não concordo quando vestem em Carolina a militância que ela não tinha. Carolina foi sim, porta voz de diversos descasos e escrevia maravilhosamente bem sobre tudo que assolava. Entendia que a questão da cor também interferia no fato de ser moradora de favela. Mas, um legado importante também é que ela falava da pobreza sem louvá-la, sem hipocrisia, e dizia que queria moradia melhor, queria se vestir melhor, comer melhor. Eu enxergo Carolina como uma mulher negra, mãe, não conformada em ser mais uma. Foi uma mulher que deixou um legado a todas nós mulheres negras periféricas: a escrita, o poder, o ser. Ela foi e é, sem sombra de dúvidas, inspiração pra rompimentos. Eu escrevo hoje e foi sim legado de Carolina”, conta a escritora Raquel Almeida.

Confira a programação das atividades em São Paulo:
>>> Quarta-feira, 08 de outubro
19h às 22h – “NA ALVENARIA SAMBANDO A BITITA: CAROLINA ALÉM DE ‘QUARTO DE DESPEJO”
Exibição do filme: “O papel e o mar”, de Luiz Antônio Pilar (Brasil, 2008)
Mesa redonda:
“Sobre ‘Casa de Alvenaria’”, com Fernanda Miranda (mestre em Letras, pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
“Carolina, personagem teatral”, com Lucélia Sérgio (Atriz e diretora na Cia Os Crespos)
“Sobre “Diário de Bitita e as músicas de Carolina” Com Flavia Rios (Socióloga, pesquisadora da vida e obra de Carolina de Jesus)
Mediação: Ruivo Lopes
Intervenções de Janette Santiago
Onde? Na Biblioteca Mario de Andrade – Rua Coronel Xavier de Toledo, centro de São Paulo

>>> Quarta-feira, 22 de outubro
19h às 22h – “CAROLINA DE JESUS, LETRA QUE ARRANHA, ESPETA E FERTILIZA”
Mesa Redonda:
“Textos de sangue – o estilo e o abalo”, com Mário Augusto (Professor da UNICAMP, sociólogo)
“Carolina, suas armas, horizontes e rastros”, com Jarid Arraes (cordelista, pesquisadora e jornalista)
“Carolina, sujeira no circuito editorial brasileiro?”, com Marciano Ventura (escritor e editor, criador do selo “Ciclo Contínuo”)
Mediação: Allan da Rosa
Onde? Na Biblioteca Mario de Andrade – Rua Coronel Xavier de Toledo, centro de São Paulo

>>> Sábado, 25 de outubro
16h às 20h –  “CAROLINA DE JESUS, A ARQUITETURA DA SOBREVIVÊNCIA E DO REVIDE”
Intervenção cênica de Débora Garcia.
Projeção do filme “Vidas de Carolina”, Jessica Queiroz (Brasil, 2013)
Mesa redonda:
“ Gritos e sussurros negros de Carolina”, com Débora Garcia (Atriz, poeta, presidente da Associação Literatura no Brasil)
“Ironia e drama em Quarto de Despejo”, com Fernanda Sousa (Professora e pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
“Dúvidas e frestas na letra de Carolina”, com Raffaella Fernandez (Pesquisadora da obra de Carolina de Jesus)
Mediação: Allan da Rosa
Onde? Comunidade Mauá – Rua Mauá, nº 342, Luz, ao lado da estação Luz de trêm/metrô

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Eu grito!

Eu grito por que ao longo de toda história,eu fui silenciada,
Porque mesmo quando quebro o silencio sou desacreditada,
Eu grito por que na fogueira minhas ancestrais foram queimadas ,
E por que, todos os dias, mulheres são agredidas pelos que dizem amá-las,
E eu grito por todas nós, oprimidas,violentadas e subjugadas.
Eu grito por que minha voz não é ouvida e sempre me quiseram calada,
Grito por que há o feminicídio,
Mulheres todos os dias,todas as horas,são mortas e o machismo as mata.
Eu grito por todas que morreram sem voz,com medo e acuadas,
Pela Jandira,pela Elisângela e pela Cláudia,
Vitimas da violência institucionalizada,
Punidas com pena de morte,
Vítimas de uma sociedade hipócrita e um estado que as criminaliza e mata,
Grito também por suas crianças, deixadas órfãs e traumatizadas.
Eu grito por que quando trago um vida ao mundo roubam meu protagonismo,
Sim, mesmo quando vou parir, eu sou violentada,
E grito por que em mim a vida pulsa e é meu corpo que pare,
Eu grito por que querem decidir sobre minha vida,sobre meu corpo,
E grito por que o sangue corre quente em minhas veias.
E eu decidi lutar e não ficar calada!
Eu grito por que escolhi não ter filhos e isso me faz ser julgada,
Por que eu escolhi ser solteira e me querem casada,
Pela minha sexualidade que querem controlada,
Eu grito pois por todo e qualquer motivo eu sou desqualificada,
E grito porque eu também sou mãe,
Grito por nossos filhos,por que as crianças também não têm voz
Crianças também não são respeitadas.
Eu grito por que eu trabalho por duas,três,quatro jornadas.
Por que trabalho mais e recebo menos.
Por que sou excluída dos espaços de poder,
E na luta de classes eu sou a mais explorada
Eu grito por que eu sou forte e me fizeram acreditar ser fraca.
Eu grito!
Eu grito por que eu sou humana, sou mulher
Sou gente e devo ser ouvida e respeitada.
Eu grito!
E vou gritar até que não seja mais preciso.
Até que a voz de todas as mulheres sejam escutadas.
Até que ninguém precise gritar mais nada. 


Renata Regina Guarani Kaiowá