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sexta-feira, 15 de junho de 2012

Quando tudo terminar


Ah se o tempo pairasse
Então nada seria como antes
Já não te deixaria, jogada entre as feras
Desprotegida & sozinha
Então toda a minha existência
Justificar-se-ia & então eu me perderia
Na imensidão dos teus olhos
De um verde tão intenso
E eu saberia
Com toda a certeza que já não posso viver
Sem você...
Sem tua doce presença na minha vida.

Otto sempre preferiu viver em regiões fronteiriças, vivia como seus antepassados, que sempre viveram assim. O clã’’, a qual Otto pertencia, vivia e morria, entre a legalidade e a ilegalidade, entre uma nação e outra, entre um continente e outro, como em uma marcha sem fim, indo e vindo ao saber das conveniências da ocasião. Viviam e morriam de lealdades e de traições, migrações e imigrações forçadas. E o teuto tomou para si esse legado familiar. Por isso escolheu para viver na cidade portuária e seus inúmeros e infindáveis vai e vem de navios, caminhões, mercadorias e gente de todos os naipes, te todas as matizes, raças e credos. E para morar, aquele bairro que não se decidia se queria ser uma zona rural ou urbana, com aquelas olarias, que importunavam a todos com seus fornos arcaicos enfumaçados, bairro cortado por uma rodovia que ligava o litoral informal e quente com o vale europeu frio e sisudo. Otto foi encontrar trabalho um pouco longe dali, no Bar-café Garibaldi, que se localizava próximo a orla, na via de acesso rápido entre cidades. Otto também dividia a vida em duas partes distintas, uma clandestina de noite, e uma aparentemente normal e de dia. Viver entre os mais variados riscos e desventuras da fronteira da ilegalidade com a legalidade. O ar puro da orla do mar de dia, o clima carregado da noite da beira do cais e por fim entre traições e lealdades. Um equilíbrio que nem sempre repousava nas mãos de Otto. Os choques entre mundos eram inevitáveis, constantes e cada vez mais violentos e cada mundo lhe cobraria, a sua maneira, um preço e uma definição. 

***

O aroma de alfazemas pairava no ar e se misturava com a música romântica francesa antiga. E a luz vermelha, que vinha do abajur ao lado da cama, deixou o quarto à meia luz. As roupas espalhadas por toda a parte compunham o ambiente. Para os dois não havia nada para se dizer, pois o silêncio já dizia tudo, e falava por si. E abraçados na cama, ficaram por mais uns alguns instantes, além do habitual, mas parecia uma eternidade para ambos.  Agnes sabia que aquilo não poderia durar muito tempo. Otto, também, sabia que as coisas não poderiam ficar no pé em que estavam. Ele queria dizer alguma coisa, mas lhe faltavam palavras, elas morriam em sua boca. Agnes nem sequer deixou espaço para tal coisa nos últimos dias. Não poderia, pois como uma boa profissional que era, tinha decidido por fim nessa história de uma vez por todas. Já o conhecia o suficiente para tanto, e daria um golpe baixo da linha da cintura, e a hora tinha que ser naquele momento. Agnes aproveitou do momento em que Otto estava frágil e cheio de culpa.  
- Amanhã, quando raiar o dia, apareço no teu trabalho, e tu vai me preparar um senhor café da manhã, seu canalha, aproveitador, seu desgraçado. Vou querer ser servida por pelo teu amiginho muito especial. Que tal, torradas e chá com conhaque canadense de sete anos? E pra Cigana, pão-de-mel e café morno sem açúcar, um limão cortado no meio e dois saquinhos de adoçante cristalizado importado. - Não era do perfil dela se portar daquela maneira com os clientes. Nem com os habituais, nem tão pouco com os ocasionais, mas aquilo tinha que ter um fim em absoluto. E não poderia ficar de pé uma centelha sequer, da relação que estava construindo com Otto, àquela relação era ruim para ambos, Agnes sabia da realidade em que vivia e não queria aquela ilusão para si. 
- Se tu fizer isto, sua puta desgraçada! Te mato... sabes que minha mulher trabalha comigo? Não sabes? – Esbravejou Otto, sem soltar Agnes dos braços, ainda a abraçava com terno carinho apesar do tom de voz áspero e duras palavras. 
- Não! Não eu sabia! – A voz dela soou com um lamento e como um pedido de desculpas.
- Pois agora tu sabes, te mato, se por os pés por lá te mato, tu e aquela tua amiga ordinária!- Retrucou o teuto, com todo o ódio do mundo, sem olhar nos olhos dela. Enquanto isso, lá fora há noite estava se despedindo, e o dia com as suas múltiplas possibilidades, vinha para expulsar Agnes da vida de Otto. Só que dessa vez era para sempre.

Samuel da Costa é contista em Itajaí 
 

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