Páginas

terça-feira, 10 de julho de 2012

Dossiê J. F. Neres (Pinheiro)

 
Interrompe-se bruscamente o sol; das flores só o cheiro cada vez mais distante. Da música os acordes mais dissonantes, depois estridentes até desaparecerem os acordes; a melodia foi vencida.
Resta o barulho ensurdecedor tentando ofuscar a lembrança, as vozes de crianças, as vozes do povo, as vozes do novo, o barulho contra o grito.
Gritos, urros, homem contra maquina de dor, a maquina contendo refinada tecnologia, manejada de arte sinistra.
Homem no escuro, o ar cada vez mais fragmentado. Sombra da noite, enfim a noite. As asas do pássaro o carregam para a noite.
Mas não.... é proibido anoitecer. Aqui também a medicina tem seu lugar, encobre a noite mas reforça a escuridão.
Nos raros intervalos em que se pode lembrar, explode o canto novo. É preciso ocupar todas as horas do dia, todos os dias da noite. Som, barulho, dança macabra, onde o velho e o filho bastardo descarregam sua ira como que vingando sua decadência.
Como pode o passado se atirar com tanta força contra o presente e o futuro? O velho ferido de morte em 1917. De lá para cá sobrevive sugando força de sua filha bastarda – a classe média, e se alimentando da bestialidade, do obscurantismo que também são sub produto do velho.
Agora a dança é mais feroz; não conta horas. O dia se perdeu, o ar ficou mais escasso, os combustíveis para vida foram cortados. Em lugar o seu terror, o delírio, as alucinações; o encontro com a noite se faz urgente antes que se apague da mente as cores, as lembranças e a força do novo.
Até a noite foi acorrentada, passou a ser jogada contra a escuridão. A força nova se mantém por um fio, comprida, reprimida. Momentos de refluxo: momentos em que o velho se impõe e festeja a vitória que antevê.
Mas um rasgo de sopro passa pelo fio e arromba a janela. Impõe de novo o novo, de a lembrança, de novo a herança, e lá fora se distingue a cor vermelha, a tocha de luz que avança nas mãos da classe operária.

“Pensamento passado para fora da prisão por Neres clandestinamente, no mês de junho de 1976.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário