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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Manoel Preto

Manoel Preto

Dedicado a Washington Luis Barcelos, que me soprou essa história

Na última noite, apenas estremecia de leve e,
aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa
vigília,cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar,
percebi que uma coisa se transformara no meus
braços. No meu colo estava uma criança encardida,
sem dentes. Morta.

 
Teleco, o coelhinho
Murilo Rubião

 
 
No caminho de Curral del Rey para Sabará, havia uma mata, e nesta mata, uma pequena estrada, calçada em alguns pontos íngremes, que era para estabilizar as carruagens para não fazer chacoalhar as damas da corte. Neste ponto, onde o caminho se curvava, os escravos velhos e doentes eram abandonados a própria sorte. Foi esse o caso de Manoel Preto, ex-príncipe de um reino africano, encarregado de encher as moringas da casa grande, e que completará 60 anos, idade bastante avançada entre os escravos.
Na ida da comitiva, Manoel Preto foi abandonado, deixado em uma pedra, sentado, esperando a morte. Na volta do comboio, outros escravos se encarregariam de enterrar o seu defunto corpo.
Mas Manoel Preto não quis assim. Sentar? Esperar a morte chegar? Não, definitivamente não! Havia cruzado todo um oceano. Seus companheiros de exílio, jogados ao mar um a um, formavam um colar de pérolas negras. Viu mulheres parirem novos lucros, e crianças crescerem nos convés. Em terra, trabalhou em lavoura, engenho, esqueceu sua língua, aprendeu outra. Teve febre, pensou na mãe, no pai, no reino que não chegou a herdar, e que provavelmente nem existia mais. Morrer assim? Mas que não! Se a morte lhe quer, que se ponha a caminhar.
E Manoel Preto caminhou. Entrou trilha, deitou mato, pendurou em pedra. Sentia-se mais forte. Ninguém a lhe dizer “faça isso, pegue aquilo, carregue tudo para acolá”. Era apenas ele e o verde a lhe abraçar.
Foi quando se deparou com uma cobra: “o pai quer que eu o ajude, lhe devorando?”. Com a cabeça fez que não. E continuou a andar.
Desta vez um carcará, pousando ao seu lado, lhe cochichou: “se o pai quer, eu lhe como. Ajudo pai, e pai me ajuda”. Mas Manoel Preto fez que não, e soprou pra longe o bico da insidiosa.
E então uma paca, não uma simples paca, mas a rainha de tudo que respira, e é bom, confeitou no seu ouvido: “pai não morre, pai é pedaço de nós. Se pai quiser, comigo tem morada”. Manoel Preto sorriu, como nunca o fazia. Se curvou. Seus pés trincaram. Seus olhos se puseram negros como a noite. E se foi em cavalgada.

Daniel Oliveira
Sabará/MG
07 de Novembro de 2012

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